É curioso observar a imparcialidade de jornalistas de esquerda (quase um pleonasmo). Foi um Deus nos acuda quando o ministro Kassio Nunes, indicado por Jair Bolsonaro ao STF, suspendeu monocraticamente a quebra dos sigilos do ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal pela CPI do 8 de janeiro. Como assim um ministro pode dar uma decisão monocrática dessas? Quebra de sigilos é uma das atribuições de uma CPI! Quem esse sujeito pensa que é para afrontar o Legislativo? Loucura, loucura, loucura!
Um dia depois, os mesmos jornalistas da esquerda imparcial indignaram-se porque a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC que proíbe as decisões monocráticas dos ministros do Supremo com efeito suspensivo sobre atos dos presidentes dos outros Poderes. Ela também muda as regras para os pedidos de vista — que deverão, segundo a PEC, ser coletivos e ter um prazo limitado a seis meses. A gritaria ainda se ouve. Como assim a aprovação se deu em 43 segundos? Essa é uma afronta ao Supremo! Quem esses sujeitos pensam que são? Loucura, loucura, loucura!
Houve jornalista da esquerda imparcial que chamou a CCJ de “Comissão de Chantagem à Justiça”. Houve jornalista da esquerda imparcial que decretou, da própria cachola, que é inconstitucional o Congresso dizer como o STF deve se organizar. Houve jornalista que acusou a CCJ de dar um golpe. Houve jornalista da esquerda imparcial que disse que as mudanças sobre decisões monocráticas e pedidos de vista já foram feitas pelo próprio Supremo e que as aprovadas pela CCJ do Senado seriam inúteis, portanto. Só esqueceram de que o regimento do tribunal pode ser mudado da noite para o dia, ao contrário de emenda à Constituição.
Entre mais enfadado do que propriamente perplexo, concluí que o Legislativo está sendo acusado de legislar, no que interpretei como criminalização da política, lembra dela? Constatei, mais uma vez, que os jornalistas da esquerda imparcial não leem a Constituição. Está lá: cabe ao Legislativo “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.
A “guerra” contra o Supremo
Como decisões monocráticas dos ministros do Supremo, assim como pedidos de vista, vêm atingindo a competência do Poder Legislativo, o motivo da mudança está justificado, assim como a legitimidade da decisão da CCJ, que terá de ser submetida ao Congresso para entrar em vigor. (Quanto aos 43 segundos que a CCJ levou para aprovar a PEC, recordo que o TSE levou pouco mais de um minuto para cassar Deltan Dallagnol.)
Há parlamentares, como o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que defendem mandato de prazo fixo para ministro do STF. Quem é contra diz que isso poderia causar mudanças constantes de jurisprudência e insegurança jurídica. Parece piada, não é?
O tema é tão sensível que o decano do Supremo foi à plataforma X para afirmar que a eventual mudança seria “acompanhada do loteamento de vagas, em proveito de certos órgãos”. Se diz isso em público, fico imaginando o que ele diz em privado. Só no Brasil.
Nessa linha de “só no Brasil”, há parlamentar defendendo até que o Legislativo possa reverter na lata decisões do STF. Aí não dá. Aí, sim, é inconstitucional. E, para falar a verdade, ninguém precisa ficar muito preocupado com imutabilidade jurídicas, porque o tribunal já reverte de tempos em tempos um monte de decisões que ele próprio tomou.
Toda essa movimentação parlamentar está sendo chamada de “guerra” contra o Supremo. É uma facilitação jornalística, mas é fato que deputados e senadores, principalmente da direita, estão incomodados com os sucessivos julgamentos no STF de temas sobre os quais caberiam aos parlamentares decidir.
O do marco temporal para demarcação de terras indígenas é o exemplo mais recente. O STF votou a favor e o Congresso votou contra logo em seguida. Outro julgamento delicado é sobre a descriminalização do aborto, iniciado sob Rosa Weber e interrompido sob nova direção.
Essa encrenca, por enquanto, não terá seguimento, segundo garantiu a Lula o agora presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso. Aprovar a descriminalização do aborto nos STF causaria desgaste ao presidente da República e acirraria o atrito do Judiciário com o Legislativo. E todas aquelas mulheres que morrem de aborto, segundo a esquerda especializada e escandalizada? Respondo com outra pergunta: o que são as convicções diante das conveniências?
Os “imparciais”
Os jornalistas de esquerda imparcial dizem que a PEC aprovada pela CCJ é do interesse fisiológico do Centrão e que Rodrigo Pacheco só quer ficar bem com a bancada da direita ao ameaçar dar uma enquadrada no Supremo. Pode ser. Como pode ser também que Gleisi Hoffmann tenha sido porta-voz de Lula ao afirmar que a Justiça Eleitoral deveria ser extinta. Ela voltou atrás, disse que não era bem assim, mas parte do PT acha que a cúpula do Judiciário está poderosa demais e, um dia, poderá se voltar contra o partido.
Nada disso tira a legitimidade do jogo do Legislativo, embora não o torne moralmente bom. Quem atacou a Lava Jato afirmando que ela criminalizava a política não pode ver a política como crime, só porque ela a desfavorece. Você pode julgar que a política é má, mas ela não deixa de ser política.
Quem defendeu tanto a democracia, aplaudindo até medidas de exceção, não deveria esculhambar o Congresso dizendo que ele afronta o STF ao legislar. Essa democracia, com esses democratas, é o que temos.
PS: Rodrigo Pacheco disse nessa sexta-feira que o Senado também discutirá o fim da reeleição no Brasil para cargos no Executivo, como o de presidente da República. Espero que a coisa vá adiante. Como a emenda da reeleição de presidente da República foi a pior coisa que poderia ter acontecido ao Brasil, o seu fim seria a melhor coisa que poderia acontecer ao Brasil.